Morte e Vida Severina
— O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias.
Mais isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar alguns roçado da cinza.
(...)
— A quem estais carregando, irmãos das almas, embrulhado nessa rede? dizei que eu saiba. — A um defunto de nada, irmão das almas, que há muitas horas viaja à sua morada.
— E sabeis quem era ele, irmãos das almas, sabeis como ele se chama ou se chamava?
— Severino Lavrador, irmão das almas, Severino Lavrador, mas já não lavra.
— E de onde que o estais trazendo, irmãos das almas, onde foi que começou vossa jornada?
— Onde a caatinga é mais seca, irmão das almas, onde uma terra que não dá nem planta brava.
— E foi morrida essa morte, irmãos das almas, essa foi morte morrida ou foi matada?
— Até que não foi morrida, irmão das almas, esta foi morte matada, numa emboscada.
— E o que guardava a emboscada, irmão das almas e com que foi que o mataram, com faca ou bala?
— Este foi morto de bala, irmão das almas, mas garantido é de bala, mais longe vara.
— E quem foi que o emboscou, irmãos das almas, quem contra ele soltou essa ave-bala?
— Ali é difícil dizer, irmão das almas, sempre há uma bala voando desocupada.
— E o que havia ele feito irmãos das almas, e o que havia ele feito contra a tal pássara?
— Ter um hectares de terra, irmão das almas, de pedra e areia lavada que cultivava.
— Mas que roças que ele tinha, irmãos das almas que podia ele plantar na pedra avara?
— Nos magros lábios de areia, irmão das almas, os intervalos das pedras, plantava palha.
— E era grande sua lavoura, irmãos das almas, lavoura de muitas covas, tão cobiçada?
— Tinha somente dez quadras, irmão das almas, todas nos ombros da serra, nenhuma várzea.
— Mas então por que o mataram, irmãos das almas, mas então por que o mataram com espingarda?
— Queria mais espalhar-se, irmão das almas, queria voar mais livre essa ave-bala.
— E agora o que passará, irmãos das almas, o que é que acontecerá contra a espingarda?
— Mais campo tem para soltar, irmão das almas, tem mais onde fazer voar as filhas-bala.
— E onde o levais a enterrar, irmãos das almas, com a semente do chumbo que tem guardada?
— Ao cemitério de Torres, irmão das almas, que hoje se diz Toritama, de madrugada.
— E poderei ajudar, irmãos das almas? vou passar por Toritama, é minha estrada.
— Bem que poderá ajudar, irmão das almas, é irmão das almas quem ouve nossa chamada.
— E um de nós pode voltar, irmão das almas, pode voltar daqui mesmo para sua casa.
— Vou eu que a viagem é longa, irmãos das almas, é muito longa a viagem e a serra é alta.
— Mais sorte tem o defunto irmãos das almas, pois já não fará na volta a caminhada.
— Toritama não cai longe, irmãos das almas, seremos no campo santo de madrugada. — Partamos enquanto é noite irmãos das almas, que é o melhor lençol dos mortos noite fechada.
(...)
João Cabral de Melo Neto
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